31 de março de 2011

Decisões

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A decisão do Sr. José apareceu dois dias depois. Em geral não se diz que uma decisão nos aparece, as pessoas são tão zelosas da sua identidade, por vaga que seja, e da sua autoridade, por pouca que tenham, que preferem dar-nos a entender que reflectiram antes de dar o último passo, que ponderaram os prós e os contras, que sopesaram as possibilidades e as alternativas, e que, ao cabo de um intenso trabalho mental, tomaram finalmente a decisão. Há que dizer que estas coisas nunca se passaram assim. Decerto não entrará na cabeça de ninguém a ideia de comer sem sentir suficiente apetite, e o apetite não depende da vontade de cada um, forma-se por si mesmo, resulta de objectivas necessidades do corpo, é um problema físico-químico cuja solução, de um modo mais ou menos satisfatório, será encontrada no conteúdo do prato. Mesmo um acto tão simples como é o de descer à rua a comprar o jornal pressupõe, não só um suficiente desejo de receber informação, o qual, esclareça-se, sendo desejo, é necessariamente apetite, efeito de actividades físico-químicas específicas do corpo, ainda que de diferente natureza, como pressupõe também, esse acto rotineiro, por exemplo, a certeza, ou a convicção, ou a esperança, não conscientes, de que a viatura de distribuição não se atrasou ou de que o posto de venda de jornais não está fechado por doença ou ausência voluntária do proprietário. Aliás, se persistíssemos em afirmar que as nossas decisões somos nós que as tomamos, então teríamos de principiar por dilucidar, por discernir, por distinguir, quem é, em nós, aquele que tomou a decisão e aquele que depois a irá cumprir, operações impossíveis, onde as houver. Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós. A prova encontramo-la em que, levando a vida a executar sucessivamente os mais diversos actos, não fazemos preceder cada um deles de um período de reflexão, de avaliação, de cálculo, ao fim do qual, e só então, é que nos declararíamos em condições de decidir se iríamos almoçar, ou comprar o jornal, ou procurar a mulher desconhecida.
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(José Saramago - Todos os nomes)

26 de março de 2011

Um dia...

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No saguão do prédio passavam deslumbrantes raparigas com suas saias de verão. Mais ou menos no meio da fila para o refeitório, observava a cena um garoto de nove anos, acompanhando sua irmã, que vestia o mesmo uniforme de todas as outras raparigas de lá. "Não te rales", falou a rapariga de dez anos que também o acompanhava, "elas não são para você", acrescentou. Havia, naquele tom de voz, uma certa inveja por ela não ser cobiçada daquela maneira. O rapazinho, naturalmente, não notou: fugiu para o interior de seus pensamentos imaginando se um dia alguma daquelas raparigas "seriam para ele".
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17 de março de 2011

Sozinhos (parte 6)

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-- Cheguei em casa ontem e finalmente bebi Jurubeba.
-- Foi mesmo, cara? Minha tia se acidentou antes do carnaval, bebeu muito.
-- Você sabe, né? Estava a um tempão querendo experimentar...
-- Ela saiu experimentando tudo e a mistura não deu muito certo.
-- Foi presente de Israel, mas guardei para uma ocasião mais própria.
-- Israel nem apareceu para dar uma força a ela no hospital.
-- Fuleragem, hein? Mas dizem que Jurubeba foi a bebida deste carnaval.
-- Hum... deve ter sido. Minha tia teve que passar por cirurgia.
-- Bem, eu não sei. Sei que bebi e achei até boazinha.
-- Beleza cabra, a gente se fala por ai.
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